sexta-feira, 1 de agosto de 2014

"A POÉTICA ROSEANA" Capítulo 5.5.6

        (As personagens)

            Em um romance, as personagens devem ser construídas de modo que o leitor reconheça nelas, pessoas que povoam o mundo real, embora sejam habitantes de um mundo ficcional. Elas reproduzem as pessoas e criam uma realidade para o leitor.
            No texto de ficção, as personagens que apresentam comportamento previsível são classificadas como personagens planas ou lineares, cuja definição só aparece uma vez em definitivo.
            Já a personagem redonda ou esférica é apresentada sob vários aspectos, é imprevisível como a própria vida. Seu comportamento imprevisível e suas características psicológicas são complexas e exigem uma análise mais profunda e atenta.
            Nas mais diversas narrativas sempre haverá as personagens protagonistas em torno das quais se desenrolam os fatos. Interagem com elas, as personagens secundárias e as mais diferentes espécies como as antagonistas, figurantes, etc.
            O escritor Guimarães Rosa idealizou, para povoar essa história, uma infinidade de personagens  que compõem o bando  de jagunços e os habitantes dos lugarejos “perdidos” no sertão. É uma tarefa “dificultosa” enumerá-los. Alguns, somente  citados, outros aparecem apenas em algumas ações.
             Entre os figurantes destacam-se o menino Guirigó, o cego Borromeu, os jagunços: Alaripe,  Siruiz e tantos... Entre as prostitutas, Nhorinhá, Miosótis e outras... A noiva, Otacília. Os estudiosos referem-se  à  Maria Mutema,  que matou o padre;  Selorico Mendes, o padrinho; Quelemém, o  guia espiritual.
            Os sub chefes  do bando: Sêo Candelário, Medeiro Vaz, Marcelino Pampa, Titão Passos  e finalmente Zé Bebelo. Riobaldo admirava todos eles, porém, por Zé Bebelo ele tinha amizade.  Foi seu professor, e depois, seu advogado de defesa no julgamento que o expulsou do sertão. Zé Bebelo voltou somente com a morte do Chefe Maior, Joca Ramiro, empenhado em  caçar os culpados. Para isso, Zé Bebelo se “arvora” de chefe e passa a comandar o bando, em que se encontra Riobaldo e Diadorim. Em certo momento, Riobaldo toma-lhe a chefia ao perceber seu enfraquecimento no comando.
             Entre os secundários de maior expressão, surge Joca Ramiro, pai de Diadorim, e comandante de todos os jagunços do “sertão das gerais” e redondezas. Trata-se de uma figura emblemática, é  querido por todos devido ao seu poder de discernimento e capacidade de “mando”. É morto à traição por Hermógenes, figura  associada ao Mal, por Riobaldo, e Ricardão seu comparsa. Eram odiados por muitos jagunços, mesmo antes da traição. Ambos são mortos durante combate, realizado como propósito de vingança.
            Durante o julgamento de Zé Bebelo dominado em um combate, Hermógenes e Ricardão, igualmente subchefes, exigiram  como sentença, a morte para ele. No entanto, Joca Ramiro decide ouvir alguns do bando que defendiam Zé Bebelo por considerarem que matar fora de combate configura assassinato e, portanto, eles eram  contra. O Chefe, Joca Ramiro, então ordena que, como sentença, Zé Bebelo vá-se embora do sertão, podendo voltar somente depois da morte do próprio Ramiro. Fica bem claro nessa passagem o código de honra dos jagunços. Assim percebe-se a preocupação de Guimarães Rosa com a verossimilhança na caracterização de seus personagens.
            Os protagonistas, Riobaldo e Diadorim,  apaixonam-se desde o primeiro momento em que se viram, ainda crianças, no porto do de-Janeiro. Diadorim, que se chamava Reinaldo, reservando o apelido somente para o amigo, representa a ambiguidade, sendo  considerada por Riobaldo  “o em silêncios”. Em diversas passagens percebe-se o seu amor por Riobaldo, porém ele nunca se declara, pois  acredita que antes de revelar seu segredo a Riobaldo e serem felizes, ele deve vingar a morte de Joca Ramiro, seu pai. Sua figura é sempre associada à neblina – “mas Diadorim é minha neblina” (2006, p.21) – e ao verde por causa dos “olhos verdes  semelhantes grandes, o lembrável das pestanas compridas” (2006, p.138). Reinaldo/Diadorim  era bonito de feições delicadas e passos curtos. Mostrou para o amigo, Riobaldo  as belezas naturais da região. Tinha ciúmes  dele com as outras mulheres e por isso demonstrava mau humor. Era valente, bom de briga de faca. Conseguiu seu intento de vingar a morte do pai matando Hermógenes, mas foi ferido mortalmente por ele  vindo a falecer. Seu segredo  revelado após sua morte o que leva Riobaldo ao desespero e a abandonar a jagunçagem.
            Riobaldo, o narrador, já velho, rememora os acontecimentos que marcaram sua vida. Do tempo que era jagunço e que amava o companheiro de armas, Diadorim, sem, no entanto, entender e aceitar aquele amor. Amor tão forte que foi determinante na decisão de ser jagunço. 
            Narra sua vida, a um senhor, na esperança de entender o que lhe aconteceu e, assim,  reconhecer a si próprio. “Diadorim? Nela pensa até hoje... E tantos anos já se passaram” (ROSA, 2006, 191). Seu maior dilema é a dúvida sobre a existência do Diabo e se teria feito um pacto com ele para conseguir vencer Hermógenes e  vingar a morte de Joca Ramiro, na intenção de  agradar Diadorim: “Pelo amor de seu pai, Joca Ramiro , eu agora matava e morria, se bem” (ROSA, 2006, p. 41). Ao  término de sua narração  conclui que não há diabo. O que existe é o Homem capaz de escrever a própria história rumo ao infinito.
            A análise dos elementos da narrativa no presente trabalho se justifica uma vez que foge aos parâmetros de uma narração tradicional. Entende-se que a composição desses elementos contribui para a estruturação da linguagem poética. A começar pelo título que propõe um sentido ambíguo, porém se analisar-se pelo aspecto poético  há uma indicação de plurissigno nas palavras. O Sertão como tal se apresenta, na obra, adquire inúmeras possibilidades de interpretação e significados.  Além disso, os dois pontos presentes no título sugerem que o sertão circunda as veredas uma vez que estão contidas nele. Essas veredas constituem  aquele espaço onde a vida se torna mais pujante. Devido à presença da água a natureza se manifesta com mais força e é onde as coisas acontecem. No mais tudo “é céu e chão”. Conforme o autor declara “o Sertão é misturado”, portanto, híbrido,  o que o torna , também, pleno de poeticidade.  
            O espaço roseano envolve e é envolvido com as vivências e emoções dos personagens. O espaço não se delimita e o autor  afirma: “O sertão é do tamanho do mundo.” (ROSA, 2006, p. 73). “Esses gerais são sem tamanho... O sertão está em toda parte”. (ROSA, 2006, p. 08).  Na narrativa o sertão se apresenta mutável e cíclico, como tudo na vida, em uma mobilidade labiríntica como a própria narrativa. Comprova-se com as diversas referências  ao movimento do vento, e das águas dos rios e da chuva. Além disso, durante os episódios em que o bando de jagunços se perde no sertão, tem-se a sensação de que o sertão se move, de que os lugares se movem.
            O tempo, da forma como é colocado na obra, com volteios, e mesmo a descontinuidade, tem relevância na narrativa, uma vez que  o autor utiliza dessa fragmentação para destacar as lembranças mais significativas de sua vida, sendo necessária a análise para o entendimento  da obra  em estudo.  Na narrativa de Riobaldo, o tempo encolhe e se dilata, de acordo com as suas memórias e com a indistinção espacial. Nesse sentido, o tempo configura-se como um dos elementos mais relevantes na composição da obra.
            As personagens contribuem, naturalmente, pois são elas que orquestram as ações e acontecimentos, favorecendo a linguagem poética. Na fabulação roseana, as personagens são caracterizadas a partir dos detalhes físicos em descrições pormenorizadas, com traços poéticos. Guimarães Rosa, sutilmente, através de indícios revela a feminilidade de Diadorim, ao longo da narrativa, como pode ser observado em  trechos como: Os olhos verdes, semelhantes grandes, o lembrável das compridas pestanas, a boca melhor bonita, o nariz fino, afiladinho” (ROSA, 2006, p.138). “Mas Diadorim sendo tão galante  moço, as feições finas caprichadas...não achavam nele jeito de macheza.” (ROSA, 2006, p. 159).
            Embora uma personagem ambígua,  Diadorim é a força que move e mantém  a narrativa, o elemento fabuloso da história de Riobaldo. É o ser que impulsiona Riobaldo em suas ações, que lhe incute a coragem. Por causa dele Riobaldo aprende tanto do amor quanto do ódio, e é ele que lhe infunde  a sensibilidade para perceber as belezas  das coisas simples.
            Finalmente, o narrador, que conta a história e revive a própria vida na tentativa de entender o que lhe aconteceu e os próprios sentimentos. Ele conta vários pequenos casos, que aludem às antigas narrativas orais, e que têm como conteúdo  a presença  gratuita do Mal. A dúvida sobre a existência ou não do Mal movimenta toda a história. Porém, Riobaldo questiona se o Mal existe por si mesmo, algo objetivo, ou se existe a dificuldade do homem em  discerni-lo do Bem.  Na narrativa ficcional, não há como elucidar  os conflitos  existenciais de Riobaldo, no que se refere à existência do Demônio, uma vez que fogem ao plano real. 
            A oralidade e a negação da lógica, presentes na narração, reforçam o aspecto poético da linguagem.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário