quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

FIO DO FERRO AMOLADO



            Para quem gosta das coisas da terra, o barulho da enxada carpindo é significativo. Remete às sementes que florescerão. Mas enquanto ouço esse som, aqui no quintal,  que me lembra tanta coisa penso nos matinhos que estão sendo arrancados. Na terra que está sendo remexida. Quanto sai de seu lugar para que outros acontecimentos sobrevenham? Como na vida da gente. Quanto de dor é necessário para que novos sentimentos surjam? E sejam  latentes até se tornarem os mais importantes. Quantos outros sentimentos vamos deixando de lado ao considerarmos este ou aquele mais importante. Nem sempre porque queremos. Às vezes uma emoção é tão forte dentro de nós que entendemos precisar  dela para sobrevivermos neste caos de insensibilidades. Porque essa emoção nos torna atuantes. Às vezes nos deparamos no ocaso, quando já não há mais tanto tempo, com um sentir que nos sacode, que nos impulsiona  porque traz um sopro num mundo já apagado, esquecido, e aí, esquecemos de todo o resto. Como deter esse sopro que era tudo que a gente esperava e que agora, para nós é tudo que resta?
            Mas é preciso enfrentar o fio da enxada. Se temos um sentimento queremos mostrá-lo ao mundo. Queremos expô-lo par a que todos saibam que somos capazes. Que somos bons o suficiente para sentir, e para conferir importância a um outro. E que somos corajosos o suficiente para lutar por ele. Que somos  fortes o bastante para cavar no outro a certeza do amor correspondido. Que somos sensíveis ao tentar imprimir na essência dele a nossa própria essência. E que somos frágeis enquanto portadores dessa emoção. Que vamos nos quebrar, que vamos nos derreter em todas as tentativas de alcançar essa essência. E se não conseguimos, se o outro não nos reconhece, se não aceita esse cargo de importante para nós que lhes conferimos, a dor que advêm é a maior desse mundo.
Existe uma emoção tão grande quanto, que é a de ser mãe. O ser mãe é um pedaço da gente que sai para fora, para o mundo. Mas o amor que dedicamos a um outro, esse sentimento que nos coloca no mundo do outro, isso é querer um outro de fora para dentro. É fazer do outro parte de nós. É quando a gente ama tanto que deseja aquele alguém dentro da gente. Acredito que essa doação é ainda maior. Um filho sai para o mundo e vai criar outro mundo  com um alguém. Esse outro tipo de amor, não. São dois mundos que se tornam um só. É muito bonito, é muito forte,  isso. E o  ser humano conhece a verdadeira felicidade quando olha para o ser amado e vê a própria importância, vê o quanto significa, no olhar do outro. Isso é o real, o extenso da vida. Todos os outros valores, todas as motivações, as significâncias  terminam aqui. No próprio reconhecimento dentro do olhar do ser amado.
            Mas existe o fio da enxada. Nenhuma dor desse mundo supera a dor da rejeição. Porque é a constatação da nossa invisibilidade para o outro, do tanto faz. Do “não quero fazer parte do seu mundo”. Nem a morte é pior que isso. A morte é inevitável. Extrapola nosso entendimento. Quando a morte leva alguém que amamos não pensamos em desamor, em desprezo. Não há o que fazer. Fica uma dor, uma saudade, mas com o tempo a vida volta. Mas a desimportância que temos diante de um amor que queremos isso nos acompanha pela vida toda. Não há conformação, não há consolo, não há nada que compense. É o fio do ferro amolado, que corta , que sangra.


Lécia Freitas

Um comentário:

  1. Feliz Ano Novo!
    Seguimos nossa caminhada na construção de um mundo mais justo, fraterno, humano, harmonioso e de doação.
    Todos somos promotores da Paz...que começa em nossos corações e se estende a tudo que nos rodeia!!!
    Obrigada por fazer parte da minha história de vida!
    UM ABENÇOADO 2017!!!!

    ResponderExcluir